só para iniciados. crises e cricris. neologismos e estrangeirismos. veneninho de canto de boca. xujo, malvado, bronco e de grande coração! escrevam também, email ali embaixo, à esquerda. enjoy!
Agora eu sei. Agora eu sei que isso pode perfeitamente acontecer comigo, a qualquer momento. Lava incandescente e furiosa subirá pelo meu esôfago e atingirá meu cérebro, me dando a sensação de nunca mais sair daqui, de sentir a lava secar dentro da minha cabeça. E imobilizá-la. E já fria permanecer do último modo para sempre.
Que último modo? Oras, seca, fria e dura.
Chegando no quarto escuro, azulado pelas sombras, encontrei a moça deitada, coberta dos pés ao pescoço. O corpo imóvel realmente parecia não respirar, exatamente como não respirava quando encostei a mão direita em seu peito. Gelada.
Os seios frios me excitaram, toquei e apalpei os dois com uma vontade até então desconhecida. Mas percebi que estava sendo mórbido, e parei. A moça jazia morta, sob e sobre lençóis de popelina. Popelina, exato, isso ainda existe.
E aquilo que jamais pensei que pudesse acontecer comigo foi completamente experimentado: um cadáver na minha cama. Não tive medo nem nojo. Dormi ali mesmo, ao lado da moça. Fria. E acordei já com a luz da lua na janela, dormi de madrugada e acordei na noite seguinte. Era um sinal não ter visto o sol naquele dia tétrico. E eu não me sentia tétrico, incrível...
Depois desse sono bizarro (existe algo mais bizarro que dormir tranqüilamente e propositalmente ao lado de um defunto?) lavei a louça. Toda ela, acumulada durante 13 dias. E tomei banho. A moça continuou lá na mesma posição, ainda bem, já pensou que estranho encontra-la, após o banho, virada de bruços e ainda gelada? Mas não foi o que houve. Na verdade não houve nada.
Eu devia pensar num modo de tira-la de lá, e não o fiz. Eu devia parar de lavar louça, tomar banho, cortar a unha, e tomar alguma providência. E não fiz nada. Meu cérebro estava imobilizado, a lava estava seca. Aquilo em cima da cama não existia pra mim, existia pra todo mundo, mas não pra mim. Ainda que ninguém tenha visto a moça lá deitada além de mim. Mas existia. E pra mim não, já disse.
Varri o tapete. Arrumei as revistas, os cds, alfabeticamente. Passei creolina no divã, consertei a panela sem cabo, assisti o último clipe da Björk. Escovei os dentes, fiz a barba e desfragmentei o computador. Não havia mais o que fazer, a casa estava um brinco.
Então dei banho na moça. E cortei suas unhas, todas. Peguei aquela mala enorme no baú do guarda-roupa e lá coloquei todas as minhas camisetas. E calças, cuecas e moletons. Alguns sapatos também, e minha escova de dente.
Deixei ela lá, deitada, lavada, perfumada e com a última camisola que haviam esquecido em casa. Com as unhas cortadas e lixadas e os cabelos cheirosos. E fui embora, tranquei a porta e joguei a chave por baixo, aquilo não me pertencia mais.
Eu tinha dinheiros, roupas e inocência. Fui embora e nunca mais voltei. Até hoje estou desaparecido pra eles todos, ninguém sabe pra onde fui, e sou procurado pela KGB. Isso definitivamente não vai me acontecer de novo.