só para iniciados. crises e cricris. neologismos e estrangeirismos. veneninho de canto de boca. xujo, malvado, bronco e de grande coração! escrevam também, email ali embaixo, à esquerda. enjoy!
O texto que vem a seguir é, a princípio, uma ficção. Qualquer semelhança imaginada por você entre o protagonista e o dono deste weblog será mera coincidência. Ou não.
Incorruptíveis
Andar descalço na rua, sim, na rua mesmo. Sujar os pés sabe-se lá com o quê...
No mar, rio, represa: andar em linha reta até onde der. Sentir a água bater na boca, no nariz, sentir a mente balançar e quase tirar uma folga, e quase me deixar evadir...
Sim, deve ser bom, e sempre penso nisso. E fazer um balanço vida/morte apenas deixa claro que, apesar de secreta, a vida depois deve ser mais, muito mais interessante...
E é isso, pra mim já está claro: quero, a partir de agora, ser um incorruptível. Questionamentos filosóficos à parte, quero e vou pensar que minha existência é muito inútil pra deixar de fazer o que der na telha...
E no fim de tudo, eu sei, isso vai parecer mais um monte de baboseira tentando pretensiosamente descobrir-analisar-questionar a vida. E digo que não é isso.
Sentar na sacada vendo tudo do décimo quarto andar. E com a bunda apoiada, os pés livres e as mãos soltas. Não vou cair...
Esticar os braços e espreguiçar a ferrugem no banho, debaixo do chuveiro. Encostar as duas mãos nele, sem medo de levar um belo choque. Isso já aconteceu comigo, caí de forma tão estupenda que nem se eu quisesse conseguiria atingir o cóccix tão em cheio. E de certa forma me sinto protegido, como se isso nunca mais pudesse acontecer comigo...
Passar novamente no Viaduto do Chá daquela forma, bem vestido, quatro da tarde, e sem medo de ser assaltado. Parar, apoiar uma das pernas na grade dourada, e amarrar o sapato, mesmo que ambos estejam corretamente calçados, assim, dando sopa...
Fumar meus habituais sete cigarros naqueles dias em que minha voz mais parece a do Pedro de Lara, rouca, terrível... Quando a dor de garganta se instalou definitivamente em seu pescoço...
Assistir a todas as novelas que me parecerem interessantes, incluindo aí minisséries e programas humorísticos. Falar disso com naturalidade e um proposital ar kitsch...
E ser fechado, lacrado, ter medo de me apaixonar, saber que sou um insensível e que só um amor à primeira vista pode salvar e apagar tantos medos e mágoas históricas, doidas... Deixar de dormir, enfrentar sono e cansaço. Por nada, pura rebeldia besta...
“Adoro crianças, bichos”, digo. E adorar também ficar um pouco sozinho com eles, isso mesmo, pra poder exercitar maldadezinhas rançosas, secretas...
Ficar com aquela canção na cabeça. Tocou na porra da rádio a semana toda. Passa na minha mente, na rua, indo pro bar, pro ponto de ônibus. Música besta, incrivelmente imbecil...
Pegar carona com ela, aquela mau-humorada do caralho, mas que não cobra nada. Pura preguiça de tomar aquela lotação realmente lotada e assim ficar lá, sentado no banco de trás do carro, olhando pros olhos birrentos e conformados dela, que dirige...
Incorruptível...
Eu sou um incorruptível...
Sou tão rebelde, transgressor, mal-criado, faço o que me dá na telha...
Rebelde a ponto de suportar uma vida medíocre, sustentada, solitária. Transgredindo regras minhas, da minha cabeça esquisita. Transgredindo minha consciência, e só. Às vezes nem isso. Mas sem deixar de afirmar que não, que sou o mais depravado...
Um coitado, só isso. E muito a contragosto...